Semana da Criança no Brasil.

Os meninos foram dormir fora de casa.
Minha esposa foi buscar e chegou me contando: doce pra todo lado.
Um amiguinho acordou vomitando, uma amiguinha com diarreia.
E olha que a semana já vinha doce — todo dia, algum agrado açucarado onde quer que fossem.

Sem neura — de vez em quando a gente também se perde no sorvete.
Minha esposa faz bolos incríveis, arroz-doce, uma canjiquinha.
E enquanto prepara, dá aquele splash de leite condensado direto na boca deles — eles piram de alegria.

O açúcar caseiro é ingrediente.
O industrializado é estratégia de mercado.
Um serve à afetividade; o outro, ao giro do capital sobre a infância.
E há uma diferença imensa entre cozinhar com açúcar e delegar o prazer da infância à indústria.

O ponto não é o doce em si.
É o excesso — e, principalmente, os doces industrializados, que devíamos abolir de vez. O cérebro infantil não foi feito pra esse bombardeio químico.
E quando esse cérebro é o de uma criança com TDAH, autismo ou outros transtornos do neurodesenvolvimento, o estrago é ainda mais invisível — e mais caro.


O açúcar como ruído neural

O cérebro infantil vive de glicose — mas não é uma montanha-russa.
Cada pico é seguido de um vale, e nesse sobe-e-desce a bioquímica perde o compasso.
A dopamina, que regula foco, prazer e motivação, vira refém.
Primeiro vem o pico (euforia, agitação, gargalhada), depois o colapso (birra, choro, tédio).
É um pequeno ciclo de abstinência.

Em crianças com TDAH, esse efeito é ampliado.
O sistema dopaminérgico já é instável, e o açúcar o empurra ainda mais.
A dopamina sobe, mas os receptores saturam — e o cérebro, sedento, pede mais.
É o mesmo mecanismo que os neurocientistas observam em vícios comportamentamentais.


A inflamação que ninguém vê

O açúcar também inflama.
Não o corpo — o cérebro.
Células chamadas microglias, que funcionam como guardiãs do sistema nervoso, entram em alerta crônico com dietas cheias de açúcar e ultraprocessados.
Liberam substâncias inflamatórias, bagunçam sinapses, atrapalham o desenvolvimento neural.
Em cérebros autistas, onde a microglia já costuma ser mais reativa, esse efeito é multiplicado.

O resultado não é “mau comportamento”: é desregulação biológica.
Um corpo que tenta se reorganizar depois de ser quimicamente empurrado pra fora do eixo.

Daí vem o comentário comum: “as crianças ficam fora de controle quando comem doce”. O que está fora de controle é a neuroquímica.


A ética do cuidado

Não é sobre proibir. Mas significar.
É sobre entender que pra muitas crianças — especialmente as neurodiversas — o açúcar não é prazer, é ruído.
E que cada pacote colorido distribuído sem pensar é uma pequena sabotagem metabólica.

Quando o adulto simplesmente retira um prazer (como o doce industrializado) sem elaborar o porquê, a criança vive aquilo como perda ou punição.
Mas quando o adulto explica — em linguagem acessível, verdadeira — que “isso aqui é feito para enganar o corpo”, “é algo que parece bom mas faz mal por dentro”, o gesto ganha outra natureza:
deixa de ser proibição e passa a ser transmissão de ética e cuidado.

Então, se você escolhe não oferecer certos produtos: fale disso, nomeie a ausência.
Não com moralismo, mas com linguagem.
É essa palavra que humaniza o corte.

O essencial não é o que se corta, e sim o que se diz ao cortar.
O interdito só tem valor se é falado e simbolizado — se ajuda a construir sentido.

No livro “Raising mentally strong kids“, Daniel Amen conta que ensinou a filha a sempre perguntar antes de comer algo:

“Isso vai fazer bem para o meu cérebro?”

É uma pergunta simples — e poderosa.
Porque desloca a conversa da culpa pra consciência.
E é isso que quero pra eles: que cresçam sabendo que o corpo fala, o cérebro responde e que o prazer pode, sim, ser saudável.

O coletivo também educa

Mas é claro que, se no seu círculo — escola, família, amigos — começamos a cultivar bons hábitos coletivos, nossos filhos podem viver quase livres dos doces industrializados.
O coletivo influencia.
A cultura do lanche também é uma cultura do olhar.
Uma criança que vê o amigo levando fruta aprende que isso é normal;
uma escola que oferece bolo caseiro ensina que o afeto pode ter outro sabor.

A mudança individual importa, mas a mudança compartilhada sustenta.
Porque o corpo da criança é, também, um corpo social — e cada lanche é uma escolha política.

Coma doce caseiro, feito por gente, não por máquina.

Referências e leituras complementares

  • Currais, A. et al. Dietary glycemic index modulates behavioral and biochemical abnormalities associated with autism. Molecular Psychiatry (2016)
  • Wang, Z. et al. Early life high fructose exposure disrupts microglia function and impedes neurodevelopment. bioRxiv (2023)
  • Gui, Z. et al. Sugar-sweetened beverage intake and hyperactivity in schoolchildren. Nutrients (2023)
  • Hirai, S. et al. High-sucrose diets contribute to brain angiopathy and higher brain dysfunctions. Science Advances (2021)
  • Chakravartti, S. P. et al. Non-caloric sweetener effects on brain appetite regulation. Nature Metabolism (2025)
  • Dolto, F. Quando Surge a Criança. São Paulo: Martins Fontes, 1998