Vista de cima de brinquedos coloridos espalhados no chão, incluindo blocos de montar, carrinhos, e peças de encaixe, organizados de forma desordenada sobre uma superfície clara.

Presente, mas invisível: a exclusão aprendida na infância

Contexto da observação

Eu sou voluntário nas atividades educativas voltadas para crianças da comunidade que faço parte. Meu papel é acompanhar crianças neurodivergentes em um ambiente compartilhado com outras crianças de diversas faixas etárias, que são divididas em dois grupos, cada um com uma professora e atividades direcionadas. Estive com uma menina autista não verbal, que costuma se movimentar livremente pelo espaço, solfejando melodias enquanto caminha. Em geral, ela circula pela sala durante as atividades, observando de longe, mas raramente se engaja diretamente com os grupos.

O inusitado

Dessa vez, ela permaneceu presente desde o início das atividades — algo incomum — participando dos momentos de conversa inicial e do lanche coletivo. Posteriormente, as crianças foram organizadas em três rodas distintas, separadas por faixa etária. A turma dela se sentou em pufes coloridos, dispostos em círculo, para uma conversa guiada por imagens ilustrando questões ambientais.

Foi então que, pela fresta entre duas crianças, ela entrou no meio da roda. Dançava e cantava em seu ritmo. Esse comportamento é familiar, por isso a educadora seguia conduzindo a conversa normalmente.

O ponto de virada

A educadora entregou uma imagem a um aluno, pedindo que ele a afixasse em um mural. Ao se levantar, a menina tentou ocupar o lugar deixado por ele, que rapidamente sentou. Foi aí que me dei conta: ela queria fazer parte. Não estava apenas dançando — havia um desejo claro de pertencimento.

Pedi que duas crianças abrissem espaço, puxei um pufe, e ela se sentou na roda. Ficou ali por quase 20 minutos — um tempo significativo para ela. Movia braços e corpo sem parar. E, ainda assim, manteve total consciência espacial para não esbarrar nos colegas. A maioria dos adultos chamaria isso de “agitação”, ou mesmo de “barreira”.

O corpo dela é sua forma mais refinada de diálogo com o mundo. E ele dizia:

  • “Estou conectada.”
  • “Estou atenta.”
  • “Estou em relação.”

Como propõe Françoise Dolto em A imagem inconsciente do corpo (1992), a criança desenvolve uma “imagem do corpo” — representação psíquica inconsciente da própria corporeidade — que comunica desejos e estados internos, mesmo antes do domínio da linguagem verbal. Essa imagem se expressa por meio de gestos, mímicas, desenhos, movimentações do corpo. No caso dela, o corpo dançante não era apenas presença: era linguagem em estado puro.

As microestruturas do não-lugar

Mesmo dentro da roda, ela não era incluída nas dinâmicas sutis do grupo. As imagens, que deveriam circular de mão em mão, eram puladas quando chegavam a sua vez. Comecei a intervir entregando as imagens diretamente para ela, e as crianças passaram então a me entregar — mas ainda não diretamente para ela.

É importante dizer: não há qualquer juízo de culpa sobre as crianças. O que essa cena revela é o quanto nós, adultos, modelamos a forma como elas lidam com a diferença. Aquilo que não se encaixa em uma expectativa de comportamento “típico” acaba sendo percebido como ausência — ou, pior, como invisibilidade.


Reflexão: A falsa abertura dos círculos

Ela entrou na roda. Mas ninguém viu. A roda estava ali, aberta no espaço, mas fechada na intenção. E foi preciso que alguém interpretasse o gesto como um convite para que o grupo reconhecesse sua presença.

Como citado acima Françoise Dolto, a criança, mesmo sem palavras, comunica. Ela falou com o corpo, com o olhar, com o desejo. E só foi realmente incluída quando alguém traduziu sua intenção em gesto socialmente compreendido: puxar um pufe, abrir espaço, mediar sua entrada.

Curiosamente, essa roda era pequena — cerca de dez crianças — e bem fechada, o que tornava impossível não notar uma criança dançando e cantando no centro. Ainda assim, ela foi ignorada. Isso revela o quanto o olhar coletivo já havia se habituado à sua presença como figura de fundo, como alguém que “não participa”.

A consciência espacial

Mesmo quando seu corpo parecia escapar à norma da quietude, havia precisão e respeito no movimento. Ela se movia sem tocar, sem colidir, sem invadir. Isso exige um grau de consciência espacial altamente desenvolvido. Não há como ignorar que há, nesse corpo em constante movimento, uma inteligência fina, sensível, perceptiva. E ainda assim, foi como se ela não estivesse ali.

A exclusão não se dá apenas pela ausência de palavras, mas pelo silêncio em torno de sua presença. Um silêncio aprendido. Um silêncio confortável para quem não quer lidar com a diferença.


Documento vivo de uma infância silenciada

Esse episódio se insere como parte fundamental do projeto “Penso, logo existo”. Porque pensar — e existir — exige que sejamos vistos como sujeitos de desejo e de participação, mesmo que esse desejo não siga os roteiros esperados da linguagem ou do comportamento.

Ela não precisa aprender a sentar “certo”. A roda é que precisa reaprender a abrir espaço para outras formas de estar. E o nosso papel como adultos, educadores, mediadores ou voluntários é garantir que essas infâncias não sejam engolidas pelo conforto da normalidade.

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  1. Aline Quintino Maia dos Santos

    Só é preciso um olhar e tudo se torna diferente. A medida em que o professor, educador ou mediador olham para as necessidades, especificidades, habilidades daquela criança , todo o grupo passa a enxergá-la. Ela ganha espaço, ela passa a pertencer, ela é incluída em tudo e por todos. Ela deixa de ser invisível. Somos peças fundamentais nesse processo de inclusão e visibilidade das crianças atípicas.

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